Fragmentos Desincorporados

O trabalho de Susana Mendes Silva, artista desassossegada e engenhosa, atravessa diversos meios sem nunca se fixar sobre nenhum. Para além de estranhos objectos híbridos (figuram como exemplo, um tampão dourado com a forma de uma bala ou um sabonete com uma lâmina introduzida no seu interior) e uma graciosa performance íntima, carregadade ansiedade (Artphone +351 91 721 8012: «Não tenhas medo de perguntar tudo aquilo que sempre quiseste saber sobre arte contemporânea»; escreveu a artista num flyer e pressuponho que a oferta ainda se mantém), Susana Mendes Silva também tirou fotografias desincorporadas dos seus pés, imagens essas que devolvem uma vista da vagina sobre as pernas, como se os dois membros tivessem vidas e vontades próprias. Nestas imagens lascivas, mas solitárias, o corpo representa um obstáculo que desperta o deleite e o fascínio, um território desmembrado.

Em Life-Cage, a artista desloca a sua atenção dos pés para as mãos - não as suas, mas as mãos treinadas de uma harpista, que ela liga às de um homem com fita adesiva e fotografa em estranhas configurações experimentais. Em "Polaroid" e - eventualmente - pela primeira vez na obra da artista, enfrentamos um rosto. É o rosto da artista e os seus olhos mantêm-se resolutamente fechados.

É provável que os olhos e as mãos sejam as zonas mais íntimas do corpo, e as mais desenvolvidas. Para Jacques Derrida, reconhecemos o Outro através das mãos e dos olhos, mas é quase impossível ver os nossos próprios olhos e mãos na totalidade. Podemos olhar-nos ao espelho e ficar com uma ideia razoável da nossa aparência, mas nunca teremos oportunidade de testemunhar os nossos actos de observação ao longo do curso natural da vida. Esta experiência pertence ao Outro. Do mesmo modo, comunicar com as mãos é quase um acto inconsciente, uma transcrição pura do desejo, em que nos revelamos ao Outro, e não a nós mesmos. A exposição Life-Cage explora as mãos e os olhos, mas Susana Mendes Silva é caracteristicamente evasiva, ocultando na mesma medida que revela: os olhos estão fechados, e é deliciosamente incerto se as mãos estão a conversar ou a discutir.

Como um cordão de pele morta, um pedaço de fita adesiva translúcida liga dois dedos à volta das cordas de uma harpa, aprisionando a mão no abraço frio e duro do instrumento. Ela - pressupomos que é uma harpista, o verniz vermelho confirma-o - é escrava do seu instrumento musical, mas esse laço pode ser facilmente quebrado. As mãos, apesar de luxuriosas, denunciam alguns sinais de esforço. Os primeiros indícios do envelhecimento manifestam-se nas pequenas rugas; a memória muscular, desenvolvida através do treino e da disciplina, inscreve-se na pele. Não esqueçamos que o cultivo do talento também endurece. O trabalho de mãos de um harpista - uma prática antiga - é profundamente emocionante, mas, e como Susana Mendes Silva nos parece dizer, aprisionante. Life-Cage pode ser visto como um lamento por uma arte perdida, mas também como o reconhecimento da dor íntima e muda que a dedicação a um ofício representa.

Em Why don't you go if you just can't move, uma obra de 1998, Susana Mendes Silva preenche vestidos de festa de bonecas com areia e dispõe estas personagens flácidas ao longo de umas escadas de madeira. Encenam um acto de corte surreal, cujo desfecho culmina com um vestido de festa posicionado num dos degraus, de modo que parece estender-se desesperadamente em direcção a um fraque masculino. Este é, uma vez mais, um drama desincorporado: não existem figuras dentro dos vestidos, não existem membros, não existem mãos, e certamente não existem olhos.

Este abandono cruel ressoa na próxima sequência de imagens de Life-Cage. A mão da harpista é liberta e unida a uma outra com o mesmo cordão de fita-cola. Esta nova mão é ligeiramente mais áspera, as unhas sem verniz, mas mesmo assim, persiste uma semelhança estranha entre esta sequência e a anterior. As mãos que agora se apresentam - uma feminina, a outra masculina - estão entrelaçadas numa coreografia agónica e afectiva. À medida que os dedos flectem, arqueiam, e dobram, as mãos transfiguram a fita, criando, ao que parece, um laço, uma pequena ponte, e, numa das imagens, um cordão umbilical que parece suster o alimento a um dedo solitário.

As mãos exalam inteligência, talvez o entendimento intuitivo e gestual do Outro que antecede todo o pensamento consciente. Todavia, não sabemos se as mãos estão a pensar/agir conjuntamente ou em oposição. Colocadas nestas posições promíscuas, estas mãos travam uma luta, para sempre entregues à indefinição da escolha entre a separação e a consumação. Mesmo assim, ficamos com a impressão de que até a consumação seria uma espécie de aniquilação, uma vingança do Outro.

As formas eróticas das mãos roçam o obsceno - obscenidade essa relacionada com a nossa dificuldade em justificar esse erotismo, uma vez que a maior parte do enredo existe literalmente fora da imagem. De novo é dado lugar à inquietante metonímia de Susana Mendes Silva; o fragmento melancólico a representar o todo ausente.

Life-Cage preenche algumas lacunas, mas ao mesmo tempo, deixa outras sedutoramente em aberto. O vídeo de curta duração, Polaroid, desloca a investigação da artista do campo do abandono e da desincorporação para a desmaterialização. Uma figura surge gradual mas inexoravelmente do puro vazio branco de uma fotografia em revelação. Susana Mendes Silva parece sangrar para ser, e isso acontece rápido de mais para podermos saborear a deslumbrante exposição de cor e textura. Permanecemos um pouco aquém, na tentativa malograda de identificar o momento em que a primeira mancha surge, quando a imagem parece quase formada, e quando exactamente é. No final, é nos negado qualquer espécie de contacto visual com a figura e, de certa forma, o vazio permanece.


James Westcott
(tradução Nancy Dantas)