Notas sobre a curadoria e exibição do Primeiro Festival de Novas Mídias do Rio de Janeiro

* Tivemos a honra de ser convidados por Alberto Saraiva para pensar, organizar e curar uma exposição de arte eletrônica no Rio de Janeiro; logo depois, o interesse em uma grande mostra, em um programa, e acabamos montando algo como um festival. Festivais costumam durar dez dias ou, no máximo, duas semanas - o nosso, teria seis semanas, como uma exposição.

* Talvez fosse esperado, neste texto, uma demonstração sobre a teoria geral da arte eletrônica, mas acredito que um texto que examine a história, um corte sincrônico e geográfico, seja importante no momento. Fatos podem ser mais esclarecedores sobre questões importantes com que estamos nos deparando. Questões relativas à recepção e leitura do trabalho de arte, de como as pessoas entendem o que é arte, de como está a produção de arte eletrônica no Rio de Janeiro, no Brasil e no mundo, em 2005; um recorte específico no tempo e no espaço.

* Escolhi escrever em parágrafos independentes e descontínuos, que se conectam entre si, de maneira que possa inserir diferentes tópicos, devido à vastidão de assuntos que desejo abordar - creio que este seja o formato mais adequado. Vamos adiante.

* No primeiro dia da montagem, ocorreu um incidente muito desagradável: o marceneiro atrasou a entrega dos móveis para os computadores e finalmente, quando mandou entregá-los - sua oficina fica a uns oito quarteirões do Centro Cultural Telemar -, para nosso assombro, ele carregou os móveis em uma carroça puxada por um homem de idade avançada, que puxava a carroça com a força dos seus músculos. Este veículo, que é uma invenção posterior à idade da pedra - talvez da idade do bronze ou do cobre -, parou em frente ao museu high tech, para assombro do staff e dos seguranças do CCT. Não é esta a relação esquizofrênica que o Terceiro Mundo desenvolve com relação à tecnologia? O extremamente desenvolvido e o extremamente atrasado co-habitando?

* "Decisões e decisões curatoriais"

Seguindo a nossa linha de trabalho, elaboramos as mostras de vídeo e de net arte, bem como as instalações, tentando representar diferentes aspectos formais, de cada gênero, e também tentando representar diferentes pontos geográficos, embora a produção esteja se tornando cada vez mais homogênea, devido ao efeito da globalização.
Chegamos à decisão de tentar mostrar um grande panorama dessa produção nômade, apresentá-la ao Rio de Janeiro, como uma chance para pesquisa. O que é que se tem produzido em vídeo, net art, cd-rom interativo? Instalações interativas? Algum outro formato? Videogame arte?
Reunimos um grande número de trabalhos, tanto de artistas experientes como de estudantes e jovens artistas dos mais variados pontos do globo. A mostra de vídeo, por exemplo, para ser assistida em sua totalidade, necessita de oito dias de visitas constantes, já que são 20 sessões de artistas selecionados; nove curadorias internacionais, divididas em 11 sessões; e cinco especiais, com artistas divididos em seis sessões, perfazendo 37 sessões de vídeo arte. Uma grande oportunidade para artistas e pesquisadores terem acesso não a monstros sagrados ou dinossauros, mas a uma intensa produção contemporânea.

* "Cabos e fios"
Uma vitória importante na montagem foi - para mim, pelo menos - deixar fios e cabos aparecerem. Existe a expectativa de que exposições de arte, em termos gerais, sejam mágicas, e essa magia se estende à montagem. Os cabos, fios, aparelhos diversos, são escondidos, é como se tudo aparecesse do nada, como se tudo fosse uma obra divina. A imagem da perfeição e harmonia que a sociedade almeja ter de si mesma, de que este é o mundo mais perfeito dos mundos possíveis, ou seja, sem contradições. Os fios, cabos e a imagem dos computadores nos remetem à realidade; e a idéia de história, toda a produção artística e cultural se apóia em aparelhos, e estes não são produzidos do nada, mas sim como parte de um desenvolvimento técnico que existe dentro da história e não fora dela.
O trabalho de Leonardo Galvão, em geral, atende a alguns desses pontos, ele é extremamente perturbador e trabalha com vídeos baixados da Internet. Leonardo combina imagens de robôs e de tecnologia bizarra com filmes pornográficos, renomeando os arquivos com poesia e teoria de arte, como em plastic modern love e arte cinética. Sua forma de realizar o trabalho é igualmente notável, organizando os filmes na tela do computador e filmando a tela; o vídeo se torna quase um registro de uma performance no computador.

* Vídeo arte e net arte não estão na hype. Vídeo arte e o corpo.
A vídeo arte já tem quase 40 anos, já tem a sua história, já existe como linguagem, tem diversos géneros e já conta com muitas teses, estudos, festivais mundiais e intelectuais dedicados ao seu estudo. No entanto, no Rio de Janeiro, essa linguagem é pouco divulgada e/ou compreendida. Embora contando com artistas do porte de Anna Bella Geiger, Letícia Parente e Sonia Andrade, além de um número crescente de artistas emergentes, ainda faltam mostras dedicadas ao gênero e produção intelectual, para se apresentar esse tipo de trabalho a um público mais amplo, como tem sido feito com o curta-metragem. Antes do prog:ME, Carlo Sansolo e Érika Fraenkel estavam extremamente envolvidos neste processo (ver: http://www.laisle.com/eventosport.html) colocando, lado a lado, a produção nacional e internacional.
A discussão sobre o que é a vídeo arte hoje merece não um ensaio, mas uma tese com diversos volumes - deixo essa missão para gente competentíssima como Arlindo Machado e Christine Mello, mas antes vou fazer alguns comentários sobre o gênero.
A vídeo arte começou de forma seminal, como interferências no aparelho de TV, usando este como escultura e interferências na imagem da TV como o fez Nam June Paik. No começo dos anos 70, câmeras de vídeo começaram a ser vendidas a um preço mais acessível; logo, artistas começaram a usá-las para substituir as câmeras super 8 e 16 mm, a fim de registrar performances e happenings. Logo, artistas elaboraram performances específicas para o vídeo.
Rosalind Krauss, em seu famoso texto vídeo "The aesthetics of narcisism", afirma que a vídeo arte tem uma forte relação com a body art e com o corpo como elemento significante. Por isso, considera a vídeo arte como uma arte narcisista por excelência, onde o corpo significante é um objeto privilegiado (e fetichista), o instrumento do artista que expressa uma gama complexa de significados.
Os vídeos que nos chegam hoje não comprovam esta tese. Cerca de 15% a 20% deles tomam o corpo como elemento importante, existe um crescente interesse na capacidade da câmera e no uso do software de edição, animação e computação gráfica. O incrível aumento na produção se pode atribuir à queda de preços das câmeras digitais e dos PCs.
A produção de vídeo arte tem se focado em dois pontos distintos: vídeos que são, preferencialmente, exibidos em looping ou em instalações, em um espaço de galeria; e vídeos que devem, preferencialmente, ser projetados em salas de vídeo ou cinema, e que dialogam mais claramente com a linguagem do cinema.
Em nossa seleção, existem trabalhos que privilegiam aspectos técnicos e abstratos com uso intenso de computação gráfica; outros, que trabalham na fronteira com o documentário e a ficção, mas se diferenciam destes pela forma não linear e pelo fato de que não estão documentando precisamente nada. Vídeos com propósitos políticos e ativistas, que têm uma narrativa elíptica e hiperconcentrada em elementos simbólicos; vídeos que dialogam com questões políticas, de forma direta, mas ainda assim, conceitual. As variações são muitas, existe um diálogo muito grande entre procedimentos do cinema, referências à arte contemporânea, ao desenvolvimento de software - como já disse - e com a mass mídia, que produz um conteúdo aparentemente hegemônico. A vídeo arte, para mim, entra nesse espaço do vídeo em que falta um nome melhor para definir, pois os trabalhos facilmente definíveis já recaem sobre clichês muito fortes, sobre o que se entende por vídeo arte, e se estabelece então uma fórmula para ser aceito no critério e na definição deste género.
É interessante observar que, ao conversar com os colegas que praticam o gênero, uma das influências que quase todos nós temos vem de J. L. Goddard, que apesar de trabalhar também com vídeo, é um cineasta. Glauber Rocha, certamente, é uma das influências também citadas por artistas brasileiros do vídeo.

*É quase lugar-comum dizer que o boom da net arte já passou, parece que todos concordam com isso, mas a Internet continua sendo um "meio" em constante expansão, e com as "ferramentas" à disposição, seja com flash action scripts, Java script, Java, html, vrml, xml e tantas linguagens que aparecem e se acumulam à disposição do trabalho da web. Trabalho este que, de forma interessante, tem muito a ver com collage, ready mades, copy and paste, já que muitos códigos estão visíveis e há tantos outros códigos prontos, na web, para serem deslocados e reutilizados. Quantas outras linguagens aparecerão? A web não se expande em velocidade, capacidade e facilidade de acesso? Acredito que esse tipo de trabalho ainda está no seu começo, assim como trabalhos de arte que vão usar a capacidade telemática como parte do seu conceito. A questão da interatividade e colaboração são outras características que vão se tornar ainda mais importantes para a arte e para a nossa vida. Vou falar brevemente sobre alguns projetos que selecionamos para o prog:ME e que ilustram um pouco esse tipo de trabalho.
Em Gwei, por exemplo, trabalho de Hans Bernhard e Alessandro Ludovico, por exemplo, já é bem auto-explicativo e sugere algumas táticas de ação (leia a sinopse): "Nós geramos dinheiro disponibilizando anúncios do Google em nosso site da web < www.gwei.org >. Com este dinheiro, nós automaticamente compramos ações da Google através de depósito bancário eletrônico na Suíça. A Google se 'auto-compra' através de anúncios! A Google se auto-engole, mas nós 'a' possuímos! Se nós tivermos sucesso estabelecendo este modelo, podemos tanto desconstruir novas formas de mecanismos de propaganda globais, obviamente surrealistas, ou simplesmente entregarmos a propriedade comum da Google à comunidade." Não preciso comentar muita coisa sobre este.
Já Carlos Katastrofsky, com o trabalho "Busca de vizinhança", assume uma diferente estratégia. Todo computador, na Internet, tem um "endereço de IP", isto é, o equivalente a um endereço no mundo real físico. Porém, no mundo real, o vizinho de um chefe de Estado, por exemplo, não será um anarquista. No ciberespaço, isto é possível. Esta máquina o deixa descobrir algo sobre "ciberbairros". De uma forma muito simples, CK faz uma radiografia dessa estrutura invisível e rizomática, que é o espaço da Internet, ou seja, traz à aparência algo que parece mágico.
A artista portuguesa Susana Mendes Silva propôs o artphone, cuja idéia é bem simples: ela nos fornece o seu endereço para podermos falar (via microfone e headphone do computador) sobre arte contemporânea, usando o computador como um telefone. Falei várias vezes com Suzana, nunca sobre arte, sempre sobre questões técnicas e, invariavelmente, apresentando um ou outro artista que aparecia quando conversava com ela. Na verdade, falar com uma pessoa desconhecida ao telefone te traz um tal grau de intimidade, que eu agia sempre com terror sobre tal conversa; aliás, constantemente senti uma certa compulsão a confessar coisas a essa voz desconhecida. A primeira lembrança é o texto história da sexualidade, de M. Foucault, sobre essa tara pela confissão em momentos íntimos. Ela dizia: "Não tenha medo, pergunte o que gostaria de saber sobre arte contemporânea." - e tudo o que mais sentia era o medo. A simples presença de uma voz que fala sobre arte contemporânea tem a capacidade de inspirar situações perturbadoras ou ótimas para o que entra em contato. Podemos pensar que é uma reflexão sobre a intimidade, na Internet. O trabalho não é só a proposição, mas o resultado desse papo que nunca pode ser completamente previsível.
Já o trabalho de xo00, milleplateaux, é um CD-Room interativo, em que o teclado se torna um gerador de tipos de formas e sons que interagem com os movimentos do mouse, formando desenhos abstratos na tela e ritmo sonoro, ao pressionarmos os botões do mouse. É um trabalho de arte generativa, que usa elementos visuais e a interação para se realizar. Existem muitos projetos que continuam trabalhando com a parte sensível e visual, de forma interessante, e este é mais um deles.

* "A recepção dos trabalhos"
Eu já, há alguns meses, venho pensando que arte contemporânea e arte eletrônica são duas coisas diferentes, com alguns pontos em comum. Uma das confirmações disto foi na palestra de Trebor Scholz, quando ele afirmou que o público de uma exposição de new media é completamente diferente do público de arte contemporânea.
E este expectador de arte contemporânea já existe no Rio de Janeiro; não existe ainda um expectador de novas mídias, estamos criando esse expectador.

- O público leigo -
A audiência que visitava a exposição, diariamente, o público sem face, a massa silenciosa. Como avaliar esta audiência? E esta pareceu não só interessado, mas principalmente entretido.
Por dias e dias pude ver crianças e adultos brincando nos trabalhos de videogame arte de Robert Praxmarer, olhando os vídeos nos lcds e mexendo nos botõezinhos; ou, no final da tarde, todos os computadores com a tela rosa, no site da Barbie, de Juliet Davies, que tem uma leitura bastante crítica sobre a boneca americana e seu estilo consumista. O público estava fascinado com os computadores e com a Internet, não necessariamente com a net arte. Somos levados a pensar sobre a questão da inclusão digital e os benefícios que esta pode trazer, assim como o aprendizado desses códigos que o uso do computador e a Internet requerem.
O que a net arte e a web arte tendem a problematizar é justamente a natureza da Internet, que tenta se apresentar como um paraíso de conhecimento e, principalmente, de consumo, de gratificação imediata, assim como o rastreamento de dados e vigilância.

* Onde está a interatividade?
Um dos exemplos de como a arte eletrônica pode ser vista, de uma forma superficial, aconteceu na nossa primeira entrevista, no segundo dia de exposição. A primeira pergunta que nos fizeram foi: "Onde está a interatividade?" - e eu expliquei que havia algumas instalações interativas, vários sites interativos e que a instalação, ali do lado, teria uma parte interativa a ser implementada. O rosto do homem foi da euforia à decepção total. Será que o fato de um trabalho de arte ter interatividade, ou não, vai se tornar um critério para avaliar se ele é bem-sucedido ou não?
Os mesmos problemas vêm sendo enfrentados pela arte contemporânea há anos e, mesmo assim, a estranheza continua. Formar um público interessado nessas questões é importante, mas nossa sociedade convive também com outras prioridades, de ordem social e econômica. A pergunta deve ser: qual o papel que a arte deve desempenhar nesta sociedade? Nós apresentamos a nossa interpretação de como pode ser. Ela está ainda aberta à pesquisa de todos, no site < www.progme.org >, onde textos e trabalhos de net art e web art estão disponíveis na Internet.

* Por que tantos artistas?
Essa pergunta foi feita mais de uma vez, por alguns artistas. A resposta é simples: porque no momento estamos reagindo contra essa tendência de se pensar que só alguns eleitos fazem vídeos interessantes e relevantes; a cena, na verdade, é imensa, e esta mostra - que também foi imensa - tenta representar e informar isso. A quem beneficia esta atitude de se pensar que apenas alguns eleitos fazem bons vídeos? Na verdade, a quantidade de trabalhos interessantes causa uma instabilidade interessante ao meio, e queremos trabalhar com essa instabilidade. O trabalho é muito maior, mas quem disse que em arte alguma coisa tem de ser fácil?

* Mas isto é realmente arte?
Realmente, eu não sei, e isso não é minha maior preocupação, no momento. Hoje, quando não sabemos exatamente o que significa uma coisa, nós a chamamos de "ARTE" - essa gama de interdisciplinaridades e objetivos diferentes, que possuem pontos de diferença e pontos de semelhança, que se englobam carnivoramente, que usam tanto procedimentos sofisticadíssimos tecnologicamente, quanto materiais mais primitivos, como o nosso próprio corpo.
Todos esses elementos são parte de um processo, de um trabalho quase silencioso e que se acelera. Tudo o que aparece hoje é rapidamente assimilado já no dia seguinte; soluções ontem marginais, hoje são estabelecidas. É bom participar deste processo e dos possíveis desdobramentos que ele pode vir a trazer.


Carlos Sansolo