(Prevenção da) Vertigem

A dança, à semelhança da escultura, tem a ver com o peso, com a inelutável força que nos puxa para o solo.

A gravidade, que é a nossa condenação por termos corpo, atrai-nos inevitavelmente para o chão, literal e metaforicamente. Por isso é que as alegorias que glosam a questão da fraqueza humana, da submissão ao corpo e ao desejo são frequentemente histórias de quedas - a queda de Ícaro, a queda de um anjo. A queda é o reconhecimento da corporalidade, tanto que a nossa consciência de que somos uma pessoa está indissoluvelmente ligada ao momento em que, titubeantemente, caindo, nos conseguimos sustentar de pé e, ao espelho, vemos a nossa verticalidade.

A dança, na sua versão clássica - precisamente ao contrário da dança contemporânea - é o corpo, martirizado em pontas, projectado em salto, fingindo que é imponderável, vestindo-se de espírito.

Uma bailarina, vestida como tal, é o epítome do imaginário sobre a elegância, a graça e o equilíbrio. Uma bailarina vestida de negro é a imagem sombria da imponderabilidade, é um anjo em queda.

A imagem de Susana Mendes Silva é sobre a vertigem da queda, sobre a perda da possibilidade poética da imponderabilidade, sobre a atracção dos corpos pelo solo. Em última instância, sobre a morte. Daí nasce a sua intensidade: da enorme fragilidade de um anjo que apoia o peso, porque andar (ou descer uma escada) é cair até o outro pé suster a queda.

Claro que convoca a memória de outras obras da história da arte moderna: desde o «Nu Descendo as Escadas», de Marcel Duchamp, à pintura de Ema, nua, descendo as escadas, de Gerhard Richter. Mas lá no fundo da nossa memória, no recôndito da nossa atenção, fica marcada a imagem de que cair é a irónica condição de estar vivo. Sobretudo, para um anjo. Sobretudo, se for negro.


Delfim Sardo