UM LABIRINTO DE CABELOS

Duas amigas jantam num apartamento, a conversa prolonga-se até à sobremesa. Enquanto falam, a mulher que vive no apartamento enrola os seus cabelos, distraída. De vez em quando, pega e arranca um cabelo. Repete o gesto uma e outra vez até se levantar da mesa. Os fios mutilados vão parar a um cinzeiro. A convidada sente uma estranha combinação de repulsa e fascínio pelo comportamento da amiga; pelo mistério que representam as pessoas que se fazem mal a si próprias de forma incontrolável.
Square Disorder (2008), que faz parte da colecção da Fundação Leal Rios (Lisboa), foi rebaptizada como Rectangle Disorder para esta exposição, e é o resultado de vários anos de investigações de Susana Mendes Silva. Peças como Por favor, não tocar (2004), Obstáculo (2005) e Distúrbio (2006), foram antecedentes importantes no que concerne à relação entre o espaço, a obra e o espectador, enquanto outros projetos, de carácter mais linguístico, como Did I hurt you (2006) ou Ritual (2006), remetem para um universo simbólico no qual afectividade e dor vão unidas.

A aproximação escultórica e conceptual destes trabalhos de Mendes Silva tem um claro referente histórico em Eva Hesse, inspiradora de artistas mais jovens decididas a moldar a subjectividade feminina. Poderia citar-se Louise Bourgeois, acertadamente. No entanto, seria um erro atribuir este tipo de trabalhos tão poderosos, fenomenologicamente, como perturbadores, na psique, a um género em particular: a obra de Bruce Nauman está aí, por exemplo, para demonstrá-lo. Square Disorder foi associada à “crítica institucional” na sua primeira apresentação, em 2008. Ao que se poderia acrescentar o “conceptualismo romântico”, outro dos jargões na moda naquela época. Sendo certo — mas relativizando a transcendência ou a precisão deste tipo de classificações — na realidade trata-se de uma proposta original que ao mesmo tempo que dialoga, demarca-se dessas tendências e tradições.

A obra descreve-se fisicamente como uma malha ortogonal, feita com cabelo artificial, de cor castanha-escuro – a mesma da artista. Da parte superior, que pende de um tecto, caem na vertical desmesurados cabelos de aproximadamente um metro e meio de comprimento, formando uma espécie de “bosque de lianas ou de chuva fina”, como descreveu com expressividade o artista André Guedes. No seu debute na Appleton Square, a instalação estava iluminada pela luz natural de uma janela, em forma de “L”, que atravessa duas das quatro paredes desta sala.

Surpreendido ante uma obra que só se aprecia plenamente na sua proximidade e que aumenta a sua imaterialidade com brilhos quando fica banhada pelo sol, o espectador tem de decidir se entra nela ou não. Muitos fazem-no sem hesitações, para poderem experimentá-la e brincar com ela. Alguns permanecem cá fora, como voyeurs. No seu interior, a obra estimula uma gama de sensações contradictórias. A fragilidade do cabelo causa uma certa apreensão, algo que se potencia pelo facto de se tratar de uma obra de arte. Mas, por cima deste temor, a obra oferece-se, acolhedora, para ser tocada e acariciada. Esta dualidade produz um fenómeno de atracção e repulsa, que é tanto de natureza física – mesmo a um nível tão subtil como o da electricidade estática – como psicológico. Todo ele a converte numa experiência, até certo ponto, onírica, surreal; como se o “bosque de lianas” se pudesse transformar de repente numa selva de finas algas submarinas.

A obra pode ser apreciada também como um desenho no espaço. Como uma estrutura ortogonal mas orgânica, que contrasta com a severidade da arquitetura. Presa a um ritmo alegre e sensual, Square Disorder faz desfalecer a firmeza da geometria. Esta mesma atitude foi desenvolvida por artistas do universo cultural latino a que pertence Mendes Silva, como Jesús Rafael Soto ou Lygia Pape, nos anos sessenta e setenta. Ambos são autores de trabalhos que facilmente se poderiam considerar precedentes deste que nos ocupa, apesar das diferenças manifestas entre os artistas.

O “movimento” característico da obra, suavemente embalada pelas correntes de ar da sala, transmite-se como uma vibração invisível aos espectadores, que dão por si a explorar a forma de avançar, separando delicadamente as “lianas”. Ocorre-nos a imagem de um mimo que gesticula de mãos vazias para passar entre os cabelos. A presença de outras pessoas actua sem dúvida como um reflexo. Facilita um encontro íntimo que serve de base à performance, dividida em três momentos (inauguração, interlúdio e encerramento), que Susana Mendes Silva e Miguel Pereira prepararam para esta nova apresentação na Fundação Leal Rios.

A própria montagem da obra revela-se como uma sequência coreográfica: existem documentos que mostram a artista a subir e descer um escadote para construir uma estrutura quase transparente, como a teia de aranha. Tal como esta, a obra surpreende pela sua força no momento da destruição. Não é tão fácil derrubá-la como parece à primeira vista. É necessário empenho para destruir o tecido de cabelos que, unidos, se tornam mais resistentes. Toda a obra está repleta deste tipo de subtis duplicidades.

O cabelo foi, sem dúvida, um material apreciado pela vanguarda e pelos seus seguidores. Há casos icónicos, como a chávena e a colher forradas com peles de animal de Meret Oppenheim. E aproximações mais contemporâneas; penso em Mona Hatoum. Porém, o universo simbólico do cabelo não se confina, evidentemente, ao mundo da arte. A cultura popular utilizou-o de formas diversas e originais. Em certas comunidades rurais, as adolescentes deixavam-no crescer indefinidamente como uma oferenda religiosa, criando imagens mágicas e monstruosas. Sem chegar a tais extremos, ter um cabelo longo constitui ainda motivo de orgulho para muitas jovens – para desespero de alguns sectores feministas. De facto, era tradição, em países como Portugal ou Espanha, que as noivas bordassem lenços com os seus próprios cabelos para oferecerem aos futuros maridos ou raparem o cabelo quando ficavam viúvas. O cabelo, como corpo morto que é, excepto na raiz, é o único material que o organismo não é capaz de digerir; sendo esta uma das razões que explica que se tenha convertido num objeto de desejo e de fetichismo, substituto da pessoa ausente. Destes usos se deduz o seu forte vínculo à afectividade.

Perante esta constelação de referentes, que vão desde a cultura popular até à psicanálise, a obra de Susana Mendes Silva pode ser vista, em função da sua sofisticada combinação de tactilidade, erotismo e intimidade, como uma carícia cujo efeito varia consoante o indivíduo; desde a ternura até, eventualmente, algum tipo de rebuscada perversão sexual, como as que frequentemente nos chegam do Japão. Puxando este fio, haveria uma outra forma de experimentar Square Disorder, na qual a sua placidez e doçura se transformariam subitamente em algo obsessivo, compulsivo. De modo que o delicado gesto amoroso desses dedos intermináveis se metamorfosearia num abraço ciumento que resistisse a abandonar-nos.

É então, se esta interpretação é plausível, quando a peça caminharia sobre a linha ténue que separa o afecto da possessividade, a liberdade do controlo – não é em vão que a estrutura da obra nos lembra uma grelha –, para entrar mais num território inquietante, como um gigantesco labirinto de cabelos. Não parece de todo fortuito que os únicos que podem permanecer à margem desta dicotomia fossem as crianças mais pequenas, capazes de correr, inocentes, por debaixo da malha, suspensa a um metro de altura do solo.

O conceito freudiano de unheimliche, popularizado no mundo artístico como uncanny, em 1993, pela célebre exposição com o mesmo título, realizada pelo norte-americano Mike Kelley em Arnhem, na Holanda, descreve uma sensação que algumas obras de arte, como Square/Rectangle Disorder, são capazes de provocar; uma sensação que se apodera do corpo como um arrepio, mas que provém da memória, do doméstico e de representações fragmentárias ou mutiladas de corpos inertes.

Regressamos assim à história da mulher que arrancava o seu cabelo e à sensação de confortável estranheza ou incómoda familiaridade que provocava na sua amiga esse gesto que, consciente ou inconscientemente, realizava sempre na intimidade e na segurança do lar.

Pedro De Llano